Prática milenar do manejo de gado pode estar com os dias contados

Fonte Giro do Boi

Prática milenar que faz parte da criação gado de corte em todo o mundo, a marcação a fogo pode estar com os dias contados. Não por mera imposição de clientes e seus mercados consumidores ou por legislação, mas pelos benefícios que sua extinção traz para o criador. Está em curso no país um movimento formado por fazendas que estão abrindo as porteiras para que pesquisadores do Grupo Etco e da consultoria BE.Animal validem todos os benefícios que a redução da prática traz para o rebanho. Reportagem exibida no Giro do Boi desta quarta, dia 09, detalhou a iniciativa.

O professor da Unesp de Jaboticabal-SP Mateus Paranhos, zootecnista, pós-doutor em bem-estar animal e coordenador do Grupo Etco, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal, listou em que casos as marcas a fogo são usadas e a quantidade de vezes que cada animal pode sofrer a queimadura.

“Normalmente o pessoal tem o número de identificação individual, que varia de quatro a cinco dígitos, então nós estamos falando de até cinco marcas. Mês e ano de nascimento, que pode variar de dois a quatro dígitos […] e também o pessoal põe a marca da fazenda, que é garantia de propriedade. A marca de brucelose, que é obrigatória por uma normativa do Ministério da Agricultura e, em alguns casos, e é a minoria que faz isso, o pessoal marca também o número do touro pai do bezerro que nasceu. E tem também uma situação que eu considero absolutamente fora da razoabilidade: tem gente que está marcando cada parto da vaca. É como se não existisse planilha do Excel e tivesse que escrever tudo no corpo da vaca. Mas o mais frequente é a identificação individual, mês e ano do nascimento, que é o que chamam de carimbo, a marca da propriedade e a brucelose nas fêmeas. Antes de ser um dano ao couro, é uma agressão à pele do animal”, contabilizou.

Ao contrário do que parte dos pecuaristas pensa, a mudança não é difícil de se implementar dentro da porteira. “Para quê nós fazemos isso? É uma prática que vem do antigo Egito e nós estamos usando ela até hoje, quando já tem outras tecnologias que são mais eficientes, altamente viáveis. Muita gente acha que tem muitas dificuldades, mas a gente já fez vários estudos mostrando que, quando bem aplicado, funciona muito bem, é menos agressivo com os animais e também menos exaustivo para os trabalhadores. Infelizmente tem muitas coisas acontecendo no dia a dia da fazenda que passam como se fossem normais, e essa é até uma mensagem da Dra. Temple Grandin, que chama atenção para quando o errado se torna normal. Às vezes tem que vir alguém de fora para dizer que não está tudo certo. Então abra seus olhos, os seus ouvidos, preste atenção, entenda o que está acontecendo e não fique tão fechado nas práticas antigas. A tecnologia existe, tem muito conhecimento, são tecnologias de processos. Nós estamos falando de manejo, de sistemas de criação, não estou vendendo um equipamento ou colocando um no mercado. Às vezes é uma mudança simples de atitude das pessoas ou de práticas de rotina do dia a dia que fazem um benefício enorme”, destacou Paranhos.

A Fazenda São Clemente, propriedade da Agropecuária Marcondes César em São José dos Campos, interior de São Paulo, se inspirou no projeto desenvolvido na Agropecuária Orvalho das Flores, em Barra do Garças-MT (relembre o projeto de redução da marca a fogo na propriedade de Carmen Perez pelo link a seguir), e puxou mais uma fila da iniciativa para validar as vantagens da redução da marca a fogo no gado.

O titular da propriedade, o criador Frederico Marcondes, exemplificou algumas das práticas tradicionais, mas que foram sendo substituídas aos poucos por serem prejudiciais ao bem-estar dos animais. “Nós estamos sempre abertos às novidades, tecnologias e informações. […] Nós começamos a fazer inseminação artificial convencional. O que nós tínhamos que fazer à época? O uso do boi rufião. Você pegava um boi cruzado, fazia o desvio de prepúcio do animal, fazíamos vasectomia com grampo, fizemos com várias coisas. Nós operávamos entre 20 a 25 animais por ano e perdíamos dois, três, quatro pela cirurgia, com infecção. Com a tecnologia, nós fomos para a IATF, a inseminação artificial por tempo fixo, e deixamos de fazer rufião e esse já foi um avanço. Um outro manejo da fazenda: a mochação. Nós mochávamos na desmama machos e fêmeas, mas depois percebemos que, como o macho tem um ciclo curto na fazenda, de até 24 meses, não haveria necessidade, porque não havia animal se perpetuando por muito tempo na fazenda. Aí começamos a mochar somente as fêmeas. Mas por estarmos dentro de um programa de melhoramento genético, e um dos critérios de avaliação é o temperamento, observamos que os animais eram muito dóceis, muito mansos, que não representavam risco nem para os outros animais e nem para os funcionários. Deixamos de fazer também a mochação. E com o advento do confinamento, o que percebemos? Antes nós fazíamos a castração dos machos porque fazíamos a engorda a campo, sistema extensivo. Mas nós percebemos que com o confinamento, nós poderíamos dar uma dieta rica para eles em proteínas, balanceada, ajustada à era e à raça e percebemos que não precisaríamos mais castrar os animais. Deixamos de castrar os animais”, ilustrou Frederico.

AÍ EU VI VANTAGEM!

O pecuarista confirmou que o mais recente exemplo de avanço em bem-estar animal na Fazenda São Clemente foi justamente a extinção da marcação a fogo e confirmou que o fim da prática trouxe benefícios em produtividade. “Por fim, introduzimos agora a marcação a ferro zero. Para que se tenha ideia, como nascem aqui 1.500 a 1.600 animais todos os anos e nós fazíamos 10, 12 marcações a ferro por animal, nós estamos deixando de fazer uma média de 18.000 marcações a ferro nos animais substituindo a prática pelos brincos. Colocamos brinco de um lado, numa orelha, na outra orelha colocamos o botton com o mesmo número. Nós entendemos que, com o botton, a probabilidade de perda é muito pequena. Então veja só, concluindo, hoje nós tocamos no animal quando ele nasce, para colocar o brinco, a vacina do primeiro dia e depois fazemos os protocolos sanitários, ou seja, as vacinações. Nada mais. O resto do tempo nós contemplamos os animais. São animais dóceis, eles respondem no peso se você der uma boa dieta, com altos índices de fertilidade. Então dentro da cria, recria e engorda, nós temos altos índices, alta performance nesses três cenários dentro da propriedade. Foi isso que a gente percebeu que mudou, trouxe resultado para a nossa equipe, trouxe resultado para os animais e, por consequência, o resultado financeiro desejado”, aprovou o produtor.

Henrique Soares, coordenador da Allflex para RJ e SP, companhia responsável pela comercialização dos brincos e bottons, comentou a respeito de um dos pontos de interrogação dos pecuaristas sobre a substituição da marcação a fogo. “O professor Mateus Paranhos na semana passada fez uma pesquisa analisando a aplicação de 1.200 brincos e a gente teve somente uma queda, ou seja, em relação à porcentagem sobre o total, a estatística é irrisória. Trabalhando com a marca a fogo, eles estavam tendo problema de 8 a 9% na identificação. Então pensando em 1.200 animais e apenas uma queda, a gente não consegue nem calcular isso em porcentagem, em termos da eficácia do produto. Então a dúvida era exatamente essa. Mas a Allfex trabalha com material patenteado, […] ele fica totalmente livre na orelha e a gente fala em menos de 0,5% de queda. Então é um produto de extrema qualidade”, assegurou.

Para o engenheiro agrônomo Antony Luenenberg, coordenador técnico de bem-estar da MSD Saúde Animal, a mudança, que já está sendo promovida pela Fazenda São Clemente, em São José dos Campos-SP, Fazenda das Palmeiras, em Ituiutataba-MG, Fazenda Rio Corrente, em Coxim-MS, e Fazenda Cambury, em Araguaiana-MT, se trata de um marco na pecuária de corte do país. “Eu acredito que esse é um marco pensando na história da pecuária brasileira, que por muito tempo, pela cultura, utilizou marca a fogo. […] Mas agora a gente vai conseguir ter melhor identificação dos animais, a gente começa a pensar não em rebanho, mas em indivíduo. Então eu acredito que o ganho é muito grande para a cadeia da pecuária. Você pode fazer uma tatuagem, a gente tem brinco de identificação, o serviço fica muito mais rápido, você tem mais assertividade na coleta de dados, diferente de quando a gente utiliza marca a fogo. Tem marca que borra ou tem algum problema durante a vida do animal que você não consegue identificar. Então as tecnologias que vão vir, pensando em monitoramento animal, casam muito com esse projeto”, aprovou Luenenberg.
O professor Mateus Paranhos salientou também os benefícios da substituição da prática para os vaqueiros e pecuaristas. “A gente está focando no bem-estar dos animais, mas também é uma contribuição que vai facilitar e melhorar muito a administração do negócio do pecuarista. Com animais estressados, você vai ter perdas e vai ter mais riscos por conta disso e, consequentemente, uma administração mais complicada por conta de toda essa dificuldade. Então a iniciativa busca trazer também esse maior controle das condições de criação e de manejo, que obviamente tem um impacto também no negócio”, analisou.

“Para questões de bem-estar animal, nós entendemos que essa é uma questão ética. E nós realmente cuidamos do animal em toda a cadeia, não só na parte de transporte até a fábrica, como também na ponta, nas boas práticas de bem-estar animal. E a redução da marca a fogo é uma delas. É uma agressão que nós vamos diminuir cada vez mais, para uma marca. Esse é o objetivo do projeto que nós estamos apoiando atualmente. A BE.Animal, que é a empresa que está fazendo esse projeto nas quatro fazendas parceiras, que inclusive fazem parte do Fazenda Nota 10, está conduzindo esse trabalho e vai mostrar, vai criar guias, tutoriais para que a gente consiga distribuir para as fazendas parceiras nossas como fazer isso. Porque hoje muita gente realmente acha importante essa redução, mas tem dúvidas de como fazer isso na prática. O o que nós vamos através deste projetos é mostrar, através de materiais e orientações, como fazer essa redução da marca a fogo”, concluiu Everton Andrade, especialista em bem-estar animal do Friboi, empresa apoiadora do projeto.

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